Passo grande parte da tarde, numa ensolarada sexta-feira, pensando
na vida. A cerveja aquece no copo. De repente, vejo a figura triste do poeta Arnaldo Xavier cruzar a praça Benedito Calixto,
entre sombras e galhos, e caminhar em minha direção. Ao se aproximar, no entanto, seu vulto desaparece como por encanto e
lembro que ele vive agora em outra encarnação.
Anos e anos de lembranças passam na mente, mas volto à observação
de coisas vívidas na praça, quem sabe menos amarga do que o lance da memória no amigo morto: um sabiá em busca de alimento.
Abancado sozinho na mesa na entrada do Consulado Mineiro, vejo a procura nervosa da ave bicando pequenos restos de pão e grãos
debaixo das árvores.
Os pássaros gostam de São Paulo. Muitos fazem da metrópole um novo
lar. Como sobrevivem? Embora cruel, a cidade é generosa com seus pequenos habitantes. Um exemplo é o do periquito conhecido
como matraca ou maritaca, que se alimenta de vagens e aqui parece estar no habitat natural.
Também tem o pardal. Contam que foi o prefeito carioca Pereira Passos
quem o encomendou a um amigo parisiense, “no evidente intuito de alindar a urbe brasileira”. Virou praga. Está
tão acostumado com o dia-a-dia da cidade que nem mais se assusta com a presença das pessoas. Quando não há sobras de comida
na calçada, entra em bares, atacando sem medo os pés dos fregueses em busca de ocultas migalhas.
O sabiá, que vejo agora na praça Benedito Calixto, voa assustado com
um transeunte e desaparece entre a vegetação. Ainda só na solidão da tarde, penso num casal de sabiá-laranjeira, que por um
bom período viveu num raquítico pé de limão nascido quase rente à vaga na garagem do meu prédio. Bem no meio de galhos espinhentos,
dissimulado entre as parcas folhagens, tinha um ninho.
-- Como você sabe que é um sabiá-laranjeira – quis saber na
ocasião a companheira Aída. – Ora, pode ser sabiá-branco, sabiá-preto, sabiá-poca, sabiá-coleira. Pode ou não pode?
Dou razão. Mas, não é muito difícil identificar um sabiá-laranjeira.
-- Veja como é fácil – explico com a convicção de grande entendedor
de aves. -- Seu canto é forte e me parece o primeiro pássaro a despertar no amanhecer do dia. Uma boa dica para reconhecê-lo
é observar o bichinho quando pousa no chão: ele saltita e, com certa elegância, empina a cauda e sacode as asas.
Descobri o ninho por acaso. Numa tarde, cheguei cedo em casa. Havia
largado o trabalho depois de uma febre e dor de cabeça – um baita resfriado. Deixei o carro na vaga e, subindo no lado
do muro, comecei a catar as folhas mais tenras do limoeiro para fazer um chá que, segundo minha mãe, é tiro e queda.
De repente, vejo um sabiá que, mesmo com a minha presença, não levantou
vôo. Ficou ali quieto. Então, tirei as folhas necessárias e, de longe, fiquei observando sua movimentação entremeada de longas
cantigas. Foi aí que, no meio do pé de limoeiro, vi outra cauda avermelhada. Era a fêmea.
Todo dia, acompanhava tudo: os três ovinhos e, depois, os filhotes,
já com plumas, alçando os primeiros vôos. Finalmente, só restava o ninho coberto de trapos, raízes, folhas de capim e cercado
de barro nas laterais.
Os especialistas afirmam que os sabiás fecundam duas vezes por ano.
Há tempos estou de olho no ninho da garagem do meu prédio à espera da próxima ninhada. Também nesse momento, procuro encontrar
o sabiá na praça, mas ele deve estar bem longe, em outros vôos. E ali na Benedito Calixto, na minha tarde solitária, chego
a uma simples constatação que Arnaldo Xavier certamente assinaria embaixo: as aves não sabem fabricar nada, mas como os artistas
alegram a vida na metrópole.