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Nem todos os liunenses são assim de vida tão pacata e dependente das graças divinas, já que toda boa regra necessita pelo
menos de uma exceção, que se tiver duas exceções, as exceções viram a regra e a regra a exceção. João Simão é trovador e contador
de caso, nunca se deu ao aprendizado de uma profissão, a não ser tocar cocho e contar casos, mas isso, cá por estas bandas,
não é profissão, um dia talvez venha a ser, mas ainda não, e dizem as más línguas que esse mal de João Simão vem do pai, Domingos
Simão, que também era trovador e contador de caso como ele, e dizem as línguas não tão más que isso de tocar cocho e contar
casos são dons, não são coisas que se aprenda em escolas, assim como fazer cochos, embora haja os que toquem moda nas horas
vagas do trabalho, mas Domingos Simão só fazia isso, até que um dia conheceu Maria da Graça, menina bonita, ainda moça, já
que era de família, prendada e trabalhadeira, chegou até a aprender a ler e a escrever umas palavras, mas caiu na desgraça
de conhecer Domingos Simão, rapaz bonito, isso todo mundo via, mas trovador, sem lar, sem emprego, que com seu encanto e dom
de dizer palavras bonitas e de rima conquistou o coração de Da Graça, e começaram a namorar, ele com vinte e sete, ela com
dezessete, ele já experimentado na vida, muito vivido, e segundo ele, cantando, Minha vida é por aí afora, E vontade de mulher
nunca passei, Não importa se moça ou senhora, Desfeita pra casa nunca levei, se bem que casa ele não tinha mesmo, mas como
sabemos, isso é tão somente modo de falar, ou melhor, modo de cantar, e Maria da Graça, às avessas de Domingos Simão, moça
direita, sem antes ter conhecido homem, prendando-se enquanto o príncipe encantado não aparecia, sonhando com um príncipe
que nem precisava ser príncipe muito menos encantado, bastava ser bonito e direito, bastava ter aquele algo de diferente pra
acender uma chamazinha dentro do coração tão reprimido de vontades, desejos e sentimentos, aquele algo que nem ela nem outra
qualquer saberia explicar, mas ao se deparar com ele não teria dúvidas, que o coração haveria de acusar, delatar, palpitar
e precipitar, tanto precipitar que, no caso de Maria da Graça, que queria nem tanto um príncipe mas um rapaz bonito e direito,
precipitou-se no bonito e não quis mais saber do resto, que direito Domingos Simão não era e nunca virá a ser, ou viria a
ser, já que não se sabe nem se hoje está vivo ou morto, e não foi por falta de aconselhar, que todos queriam abrir-lhe os
olhos, mas o que parece ninguém saber é que o coração não tem olhos nem ouvidos, e esse gostar imenso era alheio à razão de
Maria da Graça, tanto era alheio que namoraram debaixo de árvores, no meio do mato, atrás das casas, sempre às escuras para
não darem com a vista de outros, e juras de amor e vida comum Domingos Simão lhe fez, e ela, já na idade do casamento, rendeu-se
aos desejos de Domingos, e de sua semente fez plantio, e como fruto veio a colher João Simão, que depois se veria, foi dar
como o pai, mas Domingos Simão não esperou para ver que fruto daria Maria, pois não tinha morada certa, e disso deveria saber
Maria da Graça, se é que não sabia, e partiu Domingos, num dia de domingo, pra todo mundo ver. E lá no fundo, se algum dia
Maria da Graça chegou a pensar que por ela um trovador endireitaria a vida, foi por pouco.
E viveu Maria da Graça sem graça pelo resto da vida, que não foi longa. Por amor e esperança de que Domingos Simão um dia
voltasse, batizou o filho com o sobrenome do pai, Simão, e como nome escolheu João, fadando-o já pelo nome, portador da tribulação
toda do mundo, depositário invito das maiores pragas contra a humanidade, que Jesus não mesurou o coração de seu apóstolo
com a amargura da revelação e, enviando-as pelo seu anjo, as notificou a seu servo João, desabafou o que conhecia, e conhecia
por ser Ele o Filho, e João passou a Filho também, assim como Cristo, meio-Filho, talvez, quase um Irmão, diferente dos outros,
pois irmãos todos eram e somos, um meio-Irmão, então, mas ao escolher Maria o nome de João, já selava com todos os sete selos
a sua vida, e ficou João Simão, já dando rima o próprio nome com o sobrenome, e dizia ela que o filho daria no que era o pai,
trovador, mas que seria bom no que ele fora ruim, que serviria isso para desmistificar os maus exemplos de trovadores, que
poderia aí surgir uma nova raça, sonho de gente humilde, onde já se viu querer criar uma raça se as que já existem não se
dão conta, mas não viveu Maria da Graça para ver que sua profecia se concretizaria, não no que diz respeito a uma nova raça,
mas no que diz respeito só a João Simão, trovador de bem, graças aos sete anjos, que viram graça no nome rimado e esqueceram
o presságio do apóstolo, achando que aquele menino daria para cantar as belezas da vida. E João Simão é diferente mesmo. Que
se saiba, é o único trovador que tem morada certa, e embora viva sozinho, é de bom caráter e nunca deu trabalho a ninguém,
que graças a Deus tem uma boa horta no quintal do fundo da sua casinha, e de lá tira seu alimento, o arroz, a mandioca, a
beterraba, algumas folhas, e diz que de nada mais precisa na vida, em suas palavras, cantando, Vivo bem sem ninguém, Melhor
que muitos, aposto, Como o que planto, trabalho não me vai bem, Que posso fazer se é de cantar que gosto, mas já fiquemos
sabendo que João Simão tem um desejo muito íntimo e secreto, um sonho, mas filho errante de trovador e ele próprio trovador,
não é assim muito bem visto e poucos fazem questão de sua amizade, dizendo que de terra podre não há de sair bons frutos,
por mais que se plante, por mais que se adube, mas João Simão ainda saberá mostrar seus dons de trovador diferente, que muita
coisa boa tem no coração, para mostrar e para dar, e quem sabe, quando isso vier a acontecer, nesse dia, ele consiga se realizar.