Eduardo Miranda

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2.

Vive-se com simplicidade em Liúnas do Norte, que de luxo ninguém nunca fez conta mesmo, e embora não se saiba muito bem porque Liúnas se chama Liúnas do Norte, já que do Sul não existe, julga-se ser por estar situada no Estado de Mato Grosso, e não em Mato Grosso do Sul, pois fala-se que antes de se separarem os Estados, chamava-se Liúnas do Norte apenas Liúnas, e depois que criaram o Estado de Mato Grosso do Sul é que Liúnas passou a ser Liúnas do Norte. E não foi caso decretado por lei, mas alguém que um dia falou, nessa confusão de Mato Grosso do Sul, do Norte, Não, do Norte não, é só Mato Grosso, E Liúnas fica no Mato Grosso do Sul, Não, fica aqui ao norte, Liúnas do Norte. E um falou, outro ouviu e gostou e tornou a falar, e assim foi correndo de boca em boca, Liúnas do Norte, Liúnas do Norte, tem até nome de cidade, e gostou-se do nome. Mas há outra história que diz não ser assim só por gosto e confusão. Dizem os moradores mais antigos de Liúnas que isso não foi assim ao acaso, que tudo não passa de vontades da terra que se manifestam em gentes e se satisfazem, que Liúnas, em solidariedade à dor do Estado acolhedor, pela injustiça de não ter ganho um nome a mais em troca do pedaço de terra que lhe amputaram, resolveu acrescentar do Norte em seu nome, e para isso manifestou-se numa gruta lá longe, depois do rio, enquanto um carpinteiro passava, meio sem destino e sem explicação de estar passando por lá, já que aqueles lados não são caminhos de lugar nenhum. Contam que a gruta disse, em alto e bom som, que daquele dia em diante queria Liúnas se chamar Liúnas do Norte, e que isso se fizesse certo senão só de desgraças seria a terra, e sem coragem de duvidar, o carpinteiro tratou logo de espalhar o acontecido por toda a vila, e depois sumiu não se sabe pra onde. E foi assim, desse dia em diante, que passou a vila a se chamar Liúnas do Norte, e a gruta, Ibiruengara (do tupi Yby, terra; îuru, boca; Nheengara, o medianeiro, aquele que fala), embora nunca mais se tenha ouvido nenhuma palavra. Alguns dizem que não fala mais porque esse negócio de gruta falar não passa de invenção, outros dizem que isso é assim mesmo, a gruta não fala mais por não ter a terra nada mais o que pedir ou reclamar, e sendo assim, melhor é calar do que falar sem ter o que falar. São mistérios de terra, são histórias que se conta e o povo acredita, pois já está contada.

Aqui em Liúnas do Norte, que ora ou outra poderá ser chamada de Liúnas apenas, não há muita preocupação com que caminho seguir, uma vez que ou se trabalha nas fazendas dos coronéis dos arredores, ou se dedica ao artesanato. Tanto aquele como este são trabalhos que vão exigir do homem o tanto quanto ele lhe quiser dedicar. Existem os bons capatazes, dedicados e conhecedores de tudo o que se pode conhecer de fazendas, e destes, um ou outro acaba por conseguir, já quase no final da vida, comprar uma terrinha, e quando esta sorte consegue ser passada de pai para filho, tem-se aí, em mais ou menos seis ou sete gerações se não houver interrupções, um novo fazendeiro. Por outro lado, os artesões não são assim de tanta sorte voltada para a prosperidade financeira, mas há outro tipo de ascensão que quem já provou garante que não se compara com riqueza nenhuma, que o dinheiro pode ser mais promissor mas nem de perto é tão gratificante quanto a impermanência do trabalhar nos elementos da própria natureza, com as próprias mãos, como se fosse uma nossa extensão, uma nossa e tão somente nossa individualidade. Há também os ajudantes de capatazes, geralmente crianças, com um trabalho ainda leve que vai ficando mais árduo conforme vão crescendo, até chegarem à quase escravidão, sem muitos caminhos a percorrer, pois dificilmente serão capatazes, já que seus pais não foram e os pais de seus pais também não.  E há ainda o trabalhar nos frutos da terra, tarefa que cabe às mulheres e que o homem pode ou não ajudar, dependendo de sua disposição e vontade, mas deste trabalho não se faz dinheiro, que cada um planta e colhe para seu próprio sustento, a não ser os fazendeiros, que vendem o que a terra lhes dá. Sempre foi assim e parece que sempre será.

Em Liúnas, o ritmo da existência sempre acompanhou o estilo da vida calma e pacata. Quem forasteiro vê, logo diz que aqui não se trabalha, que só se levanta do balanço para a caça quando a fome já é muita, ou para uma caminhada até o lago quando de tanta sede já nem se cospe. E não se pode dizer que é de todo mentira, como seria mentira dizer ser absoluta verdade. Que a região é abençoada com boa terra que dá tudo o que se planta, boa caça, que os rios abundam de água em qualquer época do ano e neles nunca faltou peixe, que o clima é sempre regular e favorável, disso temos que nos orgulhar e agradecer ao bom Deus, que por nós sempre olhou, talvez pelo fato de toda a população de Liúnas não passar um só dia sem ir à igrejinha do padre Frido, que na verdade se chama Fritz, um alemão que chegou aqui já tem muito tempo e construiu a igrejinha quando Liúnas nem era vila, só uma rua de ir e vir, e mais adiante será contado como ele ensinou as coisas de igreja, um tal de catecismo, e digo um tal de, porque foi contado à sua maneira, diferente daquela que se conhece, e falou coisas de Deus que ninguém conhecia, e vai se saber também que ele não chegou aqui por vontade própria, mas conseguiu cativar as pessoas, e hoje em dia, ninguém deixa de dar uma passadinha na sua igrejinha... Mas como dizia, temos uma boa região, que nos proporciona certas comodidades, diferente de outros lugares de que já ouvi falar, mas que aqui se trabalha, se trabalha. É claro que sempre tem um ou outro que nada quer saber de fazer, nem de cuidar de fazendas, nem de artesanato, e ficam jogados por aí, com um cocho debaixo do braço, contando caso e cantando moda o dia todo, e se for pensar bem, até esses a quem chamam desocupados têm a sua importância, pois estão sempre a levar alegria e diversão em suas histórias e canções. E assim era João Simão, um contador de caso, um cantador de moda, que quando lhe perguntavam o que sabia fazer, logo respondia, cantando, da ponta da língua, Duas coisas sei fazer bem, Além de contar casos e cantar, Duas virtudes que nem todos têm, Que é pensar e saber esperar. E era só o que fazia João Simão, pensava, quase o dia todo, sentado debaixo duma árvore, enquanto esperava não se sabe o quê, até que alguém passava e lhe jogava conversa e ele se dava a contar caso e a cantar moda. E alguns ainda diziam que ele não sabia viver.
O que são essas coisas senão mistérios de vida que ninguém poderá nunca desvendar, se os da nossa própria já nos custa, que dirá uns as dos outros, que cada um é o dono da sua e é quem mais a conhece.

Dúvidas à parte, as vidas não se diferem muito em Liúnas. Há de ter sempre uma grande dose de ajustamento em tudo que acontece, não estando preocupados, ao menos a grande maioria — e depois irá se falar da minoria — em mudanças ou em sonhar novos sonhos. O ritual do viver vai avançando, dia a dia, retirando-se o azeite, o palmito e o doce de coco do buriti, aproveitando suas folhas para a cestaria, a palha do aguaçu para se fazer o teto das casinholas feitas de tijolos de adobe, que é aquela mistura de barro, capim e estrume, o mesmo café da manhã durante toda a vida, uma colherinha de guaraná ralado, um copo de café e um pouco de paçoca de farinha de mandioca, e não é que alguém reclame, pois ergue-se as mãos aos céus por se ter o que comer, mas que é o mesmo é, sempre, como também é o mesmo o almoço, arroz sem sal com carne de panela ou pacu, farofa, feijão e vez ou outra um angu de fubá de milho, e a janta, que é o arroz, a carne e o ovo com muito sal e gema mole. Raras variações disso chegam a acontecer, uma maria-zabé, que é aquele arroz com carne seca desfiada ou carne moída, ou caruru, que é o mesmo angu só que regado com molho de carne moída. Não são muitas as comidas que se conhece e menos ainda as que se come, mas como já disse, disso não se reclama, ao contrário, se louva por se ter esses mesmos pratos todos os dias, que pior seria não ter nenhum.

É quase noite, todo mundo já jantou. É hora de pegar as cadeiras da sala e levar pra fora, sentar na calçada, os cochos descem das paredes, que é onde devem ficar, pendurados em pregos, longe das crianças, e prosa vai, um rasqueado aqui, prosa vem, um ponteio ali, a rapaziada andando na praça, as moças de saia curta e colorida, sandálias, os moços de calça, camisa e sapato sem meia, cabeça nua, que esse negócio de usar chapéu só é pudor pra gente velha, e passa-se as horas, resumindo assim a vida dos habitantes de Liúnas. Salvo variações de cada um, cada qual no seu trabalho ou ocupação, esta é a rotina da maioria dos liunenses, até que é chegada a hora de dormir, as crianças pra cama, o casal na sala pra conversar assuntos sérios, as tristezas, os problemas, tudo em voz baixa, recato, palavras breves, suficientes para se entender a dor ou o desacerto do que não há muito a fazer, e finda com o olhar aos céus, esperança e fé na solução que Deus há de dar, e que se não der, culpa não lhe daremos, que Deus não deve lá gostar muito de atribuirmos todos os nossos insucessos à sua má vontade ou não vontade. Amanhã é dia de conversar com padre Frido, Tá, Boa noite, Durmamos em paz, que Deus nos proteja e perdoe.

 
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