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a lamentação da cantina da lua

Depois que Clarindo mandou rezar, por conta da Cantina da Lua, a missa de sétimo dia em memória das vítimas do grande incêndio, o bar/restaurante voltou a funcionar como dantes, embora esvaziado de turistas. O Terreiro de Jesus, intocado pela catástrofe, era o limite entre a Cdade História e o amontoado de escombros que daí se seguia até o sopé da ladeira do Passo. Voltaram a se encontrar Tatá, Ângelo, Guido Batalha, Jehová, Souza Castro, Sobral e tantos outros que faziam da Cantina a república de boêmios contumaze4s, e dali especulavam o mundo, tal como no passado no 13, Galeria dos Novos, entre Permod à l’eau e canecas de vinho tinto, se varava a noite, muitas vezes ouvindo conferências e poemas de Anísio Melhor, críticas de Fernando Bastos, poemas e músicas de Ruy, Manta ou do poeta Sampaio. Nas paredes, pintores novos e velhos expunham seus quadros, de tal sorte que por ali movimentava-se uma fauna rica e inquieta de intelectuais boêmios e de contumazes, homems e mulheres, parceiros todos das noites e madrugadas.

 

Aquele incêndio produziu uma espécie de parada no tempo, aclamando a realidade clip dos fatos hipertransitórios do efêmero por uma duração mais prolongada de cenas e sentimentos, e isso deveu-se, talvez, ao esvaziamento do turismo no local, substituído pelas missões e comissões que avaliavam o desastre e projetavam formas de recuperação.

 

— Foi bom não terem enterrado Jorge ali, senão ele, sem querer, teria sido cremado. Disse Ângelo com voz cavernosa.

 

Coisa de maluco, protestou Ruy. Imaginem enterrar Jorge Amado no Largo do Pelourinho!

 

Eh! Mas você viu o movimento que foi feito nesse sentido? — retrucou Guido Batalha sorvendo o seu implacável cafezinho.

 

— Valeu o bom senso. Ou o mausoléu da Academia Brasileira de Letras, no Rio de Janeiro ou em Salvador, num cemitério qualquer, porque popular como era Jorge podia ser tanto no Campo Santo como em Quinta dos Lázaros, ou mesmo no Jardim da Saudade, como de fato se deu.

 

Conversavam sobre os acontecimentos da época de Jorge Amado, na beirada da virada do século. A Bahia tinha passado por uma fase difícil, tinha morrido o candidatio à presidência da república, cuja eleição era dada como certa. Nada impediria de Luíz Eduardo governar a Bahia e logo depois o país. A Bahia nunca viu um baiano na presidência da república, senão interinamente. Ruy Barbosa foi a grande promessa, mas não conseguiu eleger-se. Tinha tido a sua miss universo e também um jogador vencedor da copa do mundo, mas faltava o prêmio Nobel e o genial romancista, o maior de todos, estava ali pronto para recebê-lo, se não fosse a má vontade da Academia sueca e a idade avançada que não permitiu que essa glória fosse incorporada à Boa Terra. Jorge Amado morreu antes de ver o novo século. Morreu em casa, como se disse, “como um passarinho”, abençoado por todos os orixás e pelo Senhor do Bonfim.

 

A morte de Jorge Amado comoveu o povo de Salvador. A comissão da Academia Brasileira de Letras que veio reivindicar o corpo para velório e enterro no Rio de Janeiro foi vaiada pela população, ameaçada de expulsão, de tal forma que não mais se falou no assunto. O que mais se falou, entretanto, era onde enterrá-lo, que muitos queriam que a urna funerária ficasse na própria Casa Jorge Amado, outros preferiam a Igreja do Rosário dos Pretos, outros a da Conceição da Praia, ao lado de Irmã Dulce, e outros ainda, que fosse ao lado de Castro Alves, na praça do mesmo nome. Grupos com faixas, muitos deles infiltrados por vereadores e políticos de toda espécie, sindicalistas e representantes de todos os movimentos sociais, faziam comícios em ruas e praças da cidade, nos mais diversos bairros, expondo suas posições.

 

Clarindo Silva, por exemplo, expôs uma faixa conclamando a volta de Jorge Amado ao Centro Histórico. Guido Batalha publicou no jornal “A Tarde”, uma crônica que ficou célebre: “Lugar de morto é no cemitério”, o título, duro, seco, não dizia do verdadeiro teor cheio de admiração e ternura pelo velho escritor. Era uma resposta aos insensatos que queriam, ainda antes que o corpo esfriasse, que os “restos mortais” estivessem em lugares profanos sem que antesainda corpo e não restos — repousasse no território livre dos mortos, protegido por todos os santos, de todas as religiões, que em procissão ecumênica o conduziria à morada dos deuses. O corpo deveria ser velado na Igreja do Bonfim e enterrado no Campo Santo.

 

Mais tarde, passado o resguardo em terra sagrada, sim, os restos mortais poderiam ser levados para uma cripta na Casa Jorge Amado, entre seus livros e próximo de sua gente, de seus admiradores do mundo inteiro. E foi assim que se passou esse episódio tumultuoso e tumultuado na vida de Salvador, nos fatídicos anos da virada do século, que era também a data da comemoração do descobrimento do Brasil.

 

É preciso dizer que Ilhéus também reivindicou receber oescritor como lugar de sua última morada. Comissões da região cacaueira vieram a Salvador expressar o sentimento dos conterrâneos. Também Sergipe, recordando as raízes sergipanas do grande escritor.

 

Venceu o bom senso. O corpo foi exposto à visitação pública no Mosteiro de São Bento e missas foram rezadas em quase todas as igrejas de Salvador, assim como bateram os atabaques de uma centena de terreiros de candomblé. Uma verdadeira caravana de imortais da Academia Brasileira de Letras veio a Salvador, revelando uma velharia nunca ignorada, como se fossem espectros saídos de velhas fotografias ornamentais de salões nobres. A presidência da república se fez representar pelo Ministro da Cultura, Arnaldo Jabor, o presidente Fernando Collor de Melo estava nos Estados Unidos.

 

Salvador parou para reverenciar Jorge Amado. Havia mais gente que no cortejo Caboclo de Dois de Julho e o velho mestre baiano era agora uma espécie de santo para o pvo de sua terra.

 

          Luzia no meio da cavalaria

 

Era difícil entender os acontecimentos daqueles dias de praga, pois eram tantos que pareciam que a Bahia havia sido desprotegida pelo Senhor do Bonfim. Incêndio de maior magnitude consumindo o coração da cidade, o seu centro histórico, acidentes, desabamentos, separações, desamores, crimes passionais, tudo isso numa seqüência quem nem a Madame Beatriz seria capaz de predizer. E foi nesses dias tumultuosos que adveio Luiz, aquela mulher que dona elvira convocou para uma retomada da putaria organizada.

 

Tinha Luzia dançado na Cantina da Lua e caminhado sob e sobre as cinzas que cobriam de recordações o Centro Histórico do Salvador depois do grande incêndio, quando deparou com Tito e Elsa, no Santo Antônio Além do Carmo. Naquela noite, atudida, os três fizeram inveja às constelações que contemplaram do céu da Baía de Todos os Santos os desenhos para a configuração de novas constelações dos amantes enlouquecidos:

 

“O mar atira no rochedo o açoite.

Aquele aroma aumenta pela noite.

É o cravo que o dragão trouxe do mar”.

 

Procurasse no dizer das estrelas a estrela do mar e do céu, a mulher aberta ao infinito do amar desenfreado, ela própria estrela absinto, perdição absoluta. Rugia mar, noite e nuvem no infinito da casa sem fim e ela, entre espelhos e céu, era gigantesca e muitas, Senhora do Tempo:

 

“O odor de cravo pela noite aumenta.

A noite, em vez de azul, está cinzenta.

Sente-se o aroma até no lupanar.

O mar atira no rochedo o açoite.

Aquele aroma aumenta pela noite.

É o cravo que o dragão trouxe do mar.

 

Durante um tempo, do alto da montanha, como uma garganta aberta de gárgula inconcebível, a alcova de Elsa sobre a Baía de Todos os Santos era como uma boca aberta de uma baleia mítica a engoli-la, mas sem trancá-la e sim projetando-a no espaço da noite entre céu e mar, ela própria se abria em toda sua intimidade absorvendo os movimentos celestiais. Ela era tempo e , dançava com o vento e domava as tempestades, lúbrica e inconsciente era nuvem e paisagem obscena. E nesse estado de delírio disse em voz alta: ai de mim! Eu te disse! não importa, não importa, até o fim...

 

Nunca ninguém soube de tantas desgraças. Mas era assim, na Bahia, a crença de que a desgraça nunca vem . Foi um momento? Um sinal? Um fim do mundo precipitado? Quem sabe...

 

Foi nesse acontecimento que veio Luzia... Foi nesses acontecimentos todos que o tempo deu voltas como um de vento e misturou lembranças, fundiu memórias.

 

Enquanto o esforço governamental reeguia dos escombros parte da velha cidade colonial, e Elsa, com a ajuda do arquiteto Wolf, quase seu vizinho, fazia do fundo de sua alcova uma janela panorâmica sobre a Baía de Todos os Santos, com grandes painéis de vidro corrediços, um acaso levou Tito a encontrar-se com Elvira e com Luzia e soube o que andavam planejando. E foi depois desse dia bem aventurado que começaram as reformas no velho sobrado de Elsa, recriando-se em Salvador os templos do amor, sendo este o mais autêntico, porque trazia o gosto de uma tradição luxuriosa dos velhos bordéis.

 

Luzia a grande figura e com ela outras tantas mulheres fagueiras, esvoejantes, dedicadas ao prazer, em dar prazer, opostas no lugar para aonde se ir, lugar de encontro, de amizade e confronto, de paixões abismais. Eram todas estrelas da noite e do mar a seus pés. Ali, naquela alcova, na única parede que não era espelho, Ângelo Roberto gravou Luzia em toda sua sensualidade flutuando em amor com Elsa sobre nuvem tênue, cercada de sátiros com grandes caralhos em riste, cada qual com a fisionomia caricatural dos frequentadores do Buraco Doce. Denominou o painel de Profecia.

 

E assim, das cinzas do velhi Pelourinho que se projetava novamente em suas cores vivas, em letras bem desenhadas, como um estandarte, ali, no Santo Antônio, bemperto da Cruz do Paschoal, lia-se: Casa de Encontro Novbo Buraco Doce: saudades do Maciel. A Bahia recuperava uma de suas tradições mais vivas na memória dos boêmios, daqueles que se recusavam a pendurar as chuteiras. A inauguração, como não podia deixar de ser, deu-se no lusco-fusco do 2 de Julho e os salões, repletos, acolheram a maior esbórnia do novo século.


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