Eduardo Miranda

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Nada poderia acontecer na minha vida, nem de interessante nem de desinteressante. Uma vida inerte e imudável como a minha, estava para aparecer. Também não era de espantar, morando pra lá do fim do mundo, onde nem notícia tem força ou disposição para chegar, não poderia ser diferente. Já havia me resignado quanto a isto; não conheceria, nesta minha vida, ninguém além de mãe e vó, sem contar, é claro, as cabras e os bodes, as galinhas e os galos, os porcos e as porcas, as vacas e os bois, as éguas e os cavalos, as mulas e os mulos, as jumentas e os jumentos, as espigas de milho, a soja, o arroz, um ou outro legume, algumas verduras e outras tantas frutas. Pai eu perdera antes de conhecer. Mãe diz que morreu, mas vó diz que ele fugiu mesmo, que não agüentou esta vidinha e se danou. Não o culpo. acho que faria o mesmo se tivesse coragem… ao menos um pouco, pra me lançar fora desta teia em que caí quando era ainda muito pequeno, ingênuo, incapaz de formar uma consciência própria, mas agora, aos vinte e sete anos, não consigo me livrar, não consigo desfazer os finos fios elásticos que me enredam, me emaranham, já se confundindo com minha pele.

Mas é esta minha vida. Cá por estas terras, o ritmo da existência sempre acompanhou o estilo da vida, calma e pacata, sem termos ao menos tempo ou motivo de questionar os caminhos que tomamos e por quê tomamos. Na verdade, nada importa muito além das plantações e os animais, que é de onde nos sustentamos.

Foi num domingo chuvoso e sem graça - apesar que sem graça serem todos os dias - que chegou Mariana. Vó disse que era uma prima distante, por parte de pai, lá da cidade grande, que vinha passar uns tempos no meio do mato. Perguntei quanto tempo, mas vó não soube responder; disse só que ela precisava descansar e que não era pra ficar incomodando, que era pra deixá-la bem a vontade, que ela comeria se quisesse e quando quisesse, dormiria se quisesse e quando quisesse. Em outras palavras, vó falou pra fazer de conta que ela não existia, mas cá pra mim, não dava pra fazer de conta que Mariana não existia. Ela era estranhamente instigante, provocadora… quase bonita. Tinha os cabelos pretos, meio cacheados, a pele branca feito leite, uns olhos quase cinzas de tão azuis, mas com um olhar parado no ar, meio que sem vida, morto mesmo. O osso do nariz era um pouco saliente, não o bastante para deformá-lo, mas era notável, e suas bochechas rosadas pareciam feitas para combinar com os lábios finos, também rosados, as orelhas escondidas sob os cabelos davam a impressão de serem ligeiramente pontudas, o pescoço delicado, os ombros largos, os peitos empinados e bem separados pelo seio, com os bicos querendo furar a camiseta transparente, a barriguinha um pouco saltada pra fora da calça, o colo profundo, quase denunciando seu sexo, as coxas roliças, mas a bunda não era muito voluptuosa… É claro que esta foi apenas uma primeira impressão, sem muitos detalhes, mas por aí se pode perceber que ela não era de uma beleza exuberante, mas tinha um algo que não sei o quê que atraía, hipnotizava. Realmente não dava pra não notar Mariana. Mas tinha outra coisa que talvez seja fundamental para entender meus sentimentos: o braço de Mariana… ou melhor, o antebraço. O antebraço esquerdo era coisa que Mariana não tinha, pelo menos não inteiro. Acabava pouco abaixo do cotovelo, um cotó, enrugadinho e com um buraquinho na ponta, formando uma espécie de umbigo. Como era estranha Mariana! Mais tarde, vó disse que ela veio pro mato a pedido de um médico, um tal de dr. psiquiatra, dizia vó. Não lembro o nome completo do médico, mas sei que era médico de cabeça, aqueles que a gente vai pra cuidar das idéias que não vão lá muito bem.

Os dias passam, independente de querermos ou não, embora eu nunca tivesse pensado nisso, nesse negócio de o tempo passar, de não dar tempo de a gente fazer as coisas que a gente quer, mas depois que Mariana chegou, passei a ter outra relação com o tempo, meio amigo e meio inimigo, quando ele para ou passa, respectivamente, e venho pensando nisso toda noite, toda noite eu conto o tempo, os dias, as horas que Mariana já passou aqui, como se fosse uma haste com bolinhas que eu fosse empurrando de um lado para o outro, conforme o desejo de o tempo passar ou não, e queria que passasse à noite, para logo ver Mariana pela manhã, e durante o dia queria que ele parasse, ou ao menos se arrastasse, lentamente, para que passasse mais tempo com Mariana, embora não passasse com ela exatamente, mas podia ouví-la andar, vê-la nas refeições, respirar o mesmo ar que ela respirava. Talvez pensasse assim com medo que chegasse o dia de Mariana ir embora.

Vó disse que a estranheza de Mariana é por causa do braço que perdeu. Foi num acidente de carro. O noivo morreu, Mariana perdeu um pedaço do braço e do coração também. É o que dizia vó, e realmente fazia sentido, aquela estranheza toda não poderia ser por outra coisa, a não ser que a cidade grande fosse muito, mas muito diferente da vida daqui. Que seja um pouco, mas nem tanto pra deixar uma pessoa assim, parecendo louca.

Já se passaram duas semanas que Mariana chegou e nem ao menos uma palavra saiu de sua boca. Todos os dias tomamos o café da manhã juntos - a pedido de mãe, que não quer que ela se sinta muito só - e nestas horas, quando Mariana ainda veste pijama, é que posso admirar toda sua sensualidade, suas coxas entreabertas, o cheiro da manhã ainda exalando dos seus poros, o rosto levemente amassado pelo travesseiro, os pés descalços… ah! os pés descalços de Mariana eram os pés mais lindos que já vira. Nada comparados aos meus, ou aos de mãe e de vó, ou das galinhas, não. Os pés de Mariana eram pés verdadeiros! Os dedos todos certinhos, em fileirinha, pela ordem certa de tamanho! O peito do pé perfeitinho, rosadinho e rechonchudo. mas em matéria de peito, Mariana tinha outros mais bonitos. Os peitos de Mariana, pela manhã, pareciam que também tinham acabado de se levantar, independentes, ainda mais empinadinhos, os bicos pareciam furiosos tal a maneira que forçavam o tecido para fora. E as calçolas do pijama de Mariana, um pouco transparentes, querendo revelar algo mais profundo, mas na verdade só conseguiam revelar que Mariana dormia só de calçolas, sem calcinhas, aquela manchinha negra em seu ventre, parecendo uma almofadinha, as nádegas magrinhas… como era bom ver Mariana pela manhã! E foi num dia desses que Mariana falou, pela primeira vez:

Como te chamam?

... ããã… Mário.

Mariana.

Eu sei.

Quantos anos tem?

27

23

Não foi muito, mas entendi isto como uma aproximação, uma tentativa de romper um silêncio interior profundo e áspero, tornando Mariana, aos poucos, mais… comunicativa, mais… aberta… esta é a palavra certa, ao menos em relação a mim.

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